FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério
BENVINDA – Uma História de Emigração
2º Episódio
Primeiro foram eles, tinham que ir, os miúdos ficaram com a mãe dela, à espera que eles assentassem casa e trabalho, o passador dizia que isso não havia de faltar, foi cobrando o serviço, a prestações mensais, durante quase um ano, até fazer a conta que entretanto já tinha subido, havia muita gente pelo meio a quem ele ia ter de untar as mãos, era como ele dizia, ao guarda-fiscal, ao guarda-republicano, a muitos, muitos guardas por esse mundo fora, que haviam de fechar os olhos e não engatilhar as armas se os avistassem pela calada da noite.
Benvinda nunca mais esqueceu a noite de passarem a fronteira sem porta, mas com serra e muito, muito mato, muito tojo, eram de tojo de certeza os espinhos cravados na palma da mão, a noite não tinha Lua, era assim mesmo para não serem vistos, explicou o outro. A despedir-se disse, sigam sempre em frente, hão-de encontrar uma ribeira com pouca água e hão-de passá-la, não custa nada, é um tirinho até ao outro lado. Voltam a andar em frente até encontrarem o carro que vos há-de levar, o meu servicinho está feito, adeus.
– Não era assim o combinado, ele devia deixar-nos em Paris onde o trabalho nos esperava. Porcaria de gente, senhora, que viveu à custa da nossa má sorte. Ora pode escrever que esse passador que nos levou o dinheiro e nos abandonou se chamava José Moço e tem por aí um filho que herdou a ruindade do pai. Percebo, vai inventar um nome, já começo a perceber que os escritores escrevem muitas mentiras. Estou a brincar, a senhora percebe.
Foi, foi mais ou menos assim, mas, sabe, ele há coisas que eu nunca lhe vou contar, coisas que a senhora não podia entender, escrever é uma coisa, sofrer é outra, e a senhora não pode sofrer, e ainda bem, o que eu sofri e todos os outros que deram o salto e foram por aí fora, por terras do demo, à mercê de gente ruim como eu não sabia que havia.